Quando certa manhã o pai de Gregor acordou de sonhos
intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado pelo Alzheimer. E, agora?
Seria, ele, também, visto somente como um fardo para a família? Rejeitado e
descartado, assim como acontecera a seu filho?
Não! Não é preciso acordarmos transformados em uma
barata ou um escaravelho. Basta amanhecermos enfermos... com esclerose
múltipla... ou esclerose lateral amiotrófica... ou artrite deformante... ou,
quem sabe até, basta apenas envelhecermos.
Produziu? Teve boa aparência? O mundo interessa-se
por você! Desenquadrado, porém, desse modelo, você é um forte candidato a ser
menos que um copo descartável. É a sociedade capitalista, meus caros!
Entretanto, analisarmos tudo à luz da sociedade, culparmos sempre, e
tão-somente, o sistema, é, de certa forma, afastarmos, de nós mesmos, nossa
parcela de responsabilidade. Sim! É a sociedade capitalista! Mas, também, é a
atitude de cada um de nós!!! Somos nós que rejeitamos nossos velhos dentro de
casa, paralelamente ao descarte promovido pela sociedade. Somos nós que os
abandonamos, simplesmente riscando, em nossos dicionários, a palavra
“gratidão”.
Gregor carregava toda a família sobre seus ombros. A
mãe fragilizada não podia trabalhar! O pai cansado não podia trabalhar! A irmã muito jovem não podia trabalhar!!!
Gregor, encarcerado no ofício de caixeiro-viajante, cotidianamente frustrado,
mal vivia. Só trabalhava,
trabalhava, trabalhava!!! Tudo pela família! Mas a metamorfose veio! A de
Gregor... a de seu quarto... a da casa... a de sua família. Antes, o pai, a mãe
e a irmã eram um fardo, porém Gregor assumia a responsabilidade desse fardo com
consideração e amor. Agora, Gregor era o fardo! E a palavra “gratidão”? Riscada do dicionário
familiar!!!
Gregor, o inseto monstruoso, comovido ao toque do
violino. Gregor, o inseto monstruoso que, antes do débil último fôlego da
existência, ainda recordou-se da família com emoção e amor. Gregor, era ele
mesmo o inseto monstruoso??? “Diante dele,
o pai só considerava adequada a
severidade extrema.” Gregor, era ele mesmo o inseto monstruoso??? Os
familiares sequer tiveram a consideração de enterrá-lo... nem mesmo a
curiosidade de saber que destino a faxineira dera ao cadáver. Gregor, era ele mesmo
o inseto monstruoso??? Nenhum lampejo, ainda que tênue, de recordação que ali
estava partindo o filho, o irmão... mesmo que aprisionado dentro
de sua tragédia pessoal de inseto monstruoso.
Uma experiência intensa! O pretérito e o presente
fundindo-se e confundindo-se nos pensamentos de Gregor (“será mesmo que o Natal já tinha passado” – indagou-se, angustiado,
em dado instante). O não reconhecimento das cercanias acrescendo-se ao rol de
suas excentricidades (o hospital em frente à sua residência a parecer-lhe um
deserto com terra e céu cinzentos, embaralhados um no outro). Alheamento do
tempo e do espaço! Uma alienação do mundo real!!!
Ah! O surreal, tão distante... e não tão distante
assim!!! Em Kafka, o real
amalgama-se ao fantástico para estampar a verdade na face de quem a olha, mas
insiste em não ver. E a narrativa em 3ª pessoa mescla-se com um “eu”
silenciosamente gritante. Tudo, tudo é metamorfose!!!
Minha
filha Letícia, de 9 aninhos, entusiasmada parceira em minhas incursões pelo
universo da leitura, não se conformou com o desfecho que Kafka atribuiu à sua
novela literária. Argumentei que outro não poderia ser seu término, pois, se dourasse a pílula, adotando um final
feliz, Kafka não alcançaria seu maior êxito: o de desferir um soco certeiro na
boca do estômago de cada leitor. A verdade ali posta, nua e crua, para, quem
sabe, com isso, conseguir deflagrar, em nós, o início de uma metamorfose. Uma
metamorfose absolutamente indispensável ao homem contemporâneo, sem o que todos
estarão destinados à desumana descartabilidade, à solidão, ao vazio de amor.
Enquanto
conversávamos a respeito de “A METAMORFOSE”, minha filhinha desenhava...
desenhava... e a irmã de Gregor
levantava-se e espreguiçava seu corpo jovem, antes do ponto final. Estampando
os olhos de Gregor nas asas de uma borboleta, minha menina pensou na
metamorfose após a metamorfose... seu desenho era sua liberdade de escrever um novo final. A borboleta a sobrevoar um
céu, metade rubro, metade verde, onde a esperança se inscrevia sobre o sangue,
com força de superação. E, no alto da página, Letícia sintetizou seu sentimento
em uma única frase:
“Após sua morte, ele voou. E
seu corpo era jovem!”.
Enfim,
toda geração tem esse direito! Direito de sonhar! Direito de lutar!!! Direito de
reinventar-se em suas metamorfoses!!!
Texto: Rita de Cássia Brígido Feitoza (Graduada em Letras e Direito pela UFC )
Muito bom o texto. Tive uma agradável leitura. Adorei.
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